Há males que vem para o bem, dizem. Como se fossem males meramente aparentes, horrendos só na fachada, mas carregados de tesouros secretos. Como uma pessoa de rosto deformado, corcunda e mau-cheirosa, com bafo de onça, que ao primeiro contato nos causa repulsa, mas em quem encontramos um excelente coração e mil jóias de bondade que não estavam anunciadas na vitrine…
Males que vêm para o bem?… Suspeito que, nestes casos, as pessoas que sofrem os males é que conseguem encontrar neles um “lado bom”, uma vantagem, um encanto na vida que foi modificada, ainda que por um indesejado terremoto…
Saber-se mortal ao ter que vivenciar os sofrimentos de uma doença: eis aí um exemplo de um suposto mal que pode vir para um bem salutar. Como na inesquecível e emblemática cena de O Sétimo Selo de Bergman em que o sujeito está jogando xadrez com a morte: não se trata somente de procrastinar o momento fatal onde deixaremos de estar entre os vivos, mas de perceber, neste face-a-face com a foice, que cada lance no tabuleiro deve ser feito com plena lucidez e presença.
Ninguém deseja a doença, mas quando ela vem, melhor lutar contra ela sem perder o amor à vida, se possível. Aproveitando até o que ela possa trazer de bom, em termos de aprendizado, experiência de vida, ampliação de horizontes limitados… Hão de perguntar: mas o que diabos uma doença pode trazer de bom, de fato?
Em primeiro lugar: acho que, apesar do sofrimento terrível que é sentir o próprio corpo ficar com defeito e dolorido, ou sendo atacado por outros organismos, roído por dentro pelas batalhas entre os invasores e os anti-corpos, abre-se a possibilidade, na doença, de um reconhecimento pleno da nossa mortalidade. As vísceras, e não o entendimento, aprendem a amarga lição: somos mortais. Sem apelação e sem motivo.
Dirão alguns que isto não é “bem” algum e que só nos traz um suplemento de angústia e desassossego, como se mais nuvens nubladas viessem somar-se aos temporais da doença… Mas, numa outra perspectiva, o aprendizado da mortalidade talvez seja essencial para o aprendizado da vida. E aprende-se a mortalidade muito melhor quando cai-se doente do que quando lê-se num tratado filosófico o silogismo tão repetido e, por isso, tão anêmico: “Todo homem é mortal. Sócrates é homem. Portanto, Sócrates é mortal”. É nosso próprio nome que entra no lugar de “Sócrates” quando, num leito de hospital, numa mesa de cirurgia, sentimos a precariedade de nossa carne, a fragilidade de nossa vida…
E talvez aqueles que sabem que vão morrer vivam melhor do que aqueles que caminham de olhos vendados na direção do abismo. “De costas para o poente”, como diz o Rubem Alves. E para o abismo caminhamos todos, queiramos ou não, o que não impede que colhamos morangos pelo caminho…
“Para ficar sábio é preciso ser discípulo da morte. (…) Aqueles que contemplam a morte nos olhos vêem melhor, porque ela tem o poder de apagar do cenário tudo aquilo que não é essencial. Os olhos dos vivos tocados pela morte são puros. (…) São apenas duas as coisas que a morte nos diz de sua beleza crepuscular, resumo de toda sabedoria: tempus fugit, portanto, carpe diem.” (…) “Carpe diem: colha o dia, como algo que nunca mais se repetirá, como quem colhe um crepúsculo, ‘antes que se quebre a corrente de prata, e se despedaçe a taça de ouro…’ (Eclesiastes 12.6). Beba cada momento até as últimas gotas. É preciso olhar para o abismo face a face, para compreender que o outono já chegou e que a tarde já começou. Cada momento é crepuscular. Cada momento é outonal. Sua beleza anuncia seu iminente mergulho no horizonte.” [RUBEM ALVES, As Cores do Crepúsculo]
É como se o mel fosse mais doce na língua de quem se sabe provisório. Com esta língua que os vermes haverão de comer, devoro com pressa os frutos da terra! E com esta vida que se apagará, amo-te, meu amor, com um ardor de que são incapazes os que se julgam sóis imorredouros…
Talvez.
A doença, além de escola da mortalidade e, por isto mesmo, de sabedoria, pode também, me parece, servir como a ocasião para a descoberta da solidariedade. Algumas das mais belas cenas de Bergman prestam testemunho disso. Como em “Gritos e Sussuros”, quando a moribunda, acamada e enfeiada, em seus últimos suspiros, descobre a ternura e o desvelo logo na figura imprevista de sua criada. Interessante notar que esta figura “subalterna”, de uma classe social inferior, é a fonte de onde emana o calor e o auxílio de que a adoentada precisa, e não as próprias irmãs, que teoricamente deveriam apoiar sua irmã padecente bem mais do que uma pessoa com quem a doente não possuía nenhum laço sanguíneo.
Belo símbolo para nos sugerir que a doença talvez possa ser a porta que se abre para uma fraternidade maior do que a consanguínea! Uma fraternidade que não exige que o outro seja seu irmão “de fato” para tratá-lo como um. Uma fraternidade que não pede do outro uma igualdade de origens, uma semelhança de classe, para julgá-lo digno de auxílio, amor, amparo. E é a experiência de milhares de nós, não só da personagem de Bergman, que há ocasiões na vida em que as pessoas que são conosco as mais fraternas não tem nenhuma relação com nossa família.
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“E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: “Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência – e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez – e tu com ela, poeirinha da poeira!”. Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderías: “Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!” Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: “Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?” pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?” – NIETZSCHE — A Gaia Ciência
Penso no “eterno retorno” de Nietzsche, uma das idéias mais misteriosas e enigmáticas que eu conheço na história da filosofia, e no quanto este eterno retorno seria sentido como terrível, se existisse, por um doente. Seria uma horrenda piada sádica, toda a existência, se não bastasse sofrer por uma vida, se fosse necessário que este sofrimento se multiplicasse numa miríade infinita de idênticas vidas. Que horror! Talvez por isto a última coisa que os budistas querem na vida é o renascimento! Um doente, pois, é um torcedor fanático para que o Eterno Retorno não exista: que perspectiva horrenda, sentir que será preciso atravessar, não só uma vez, mas infinitas vezes, este mesmo martírio! Cruzes!
Mas, ainda bem, me parece que o fluxo de Heráclito, e não a hipótese do “eterno retorno” nieztschiana, é que é a descrição mais precisa do real. O que tem seu lado consolador: os sofrimentos, uma vez sofridos, não voltarão. Podem ser teimosos, persistirem, mas nenhuma dor é eterna, nem mesmo vitalícia, e há uma bonança para cada tempestade, ainda que tarde. Nunca se sofre duas vezes a mesma dor, e é bom sofrer dores diferentes: a mesma dor, eterna, seria ainda mais horrenda. A vida, esta só se vive uma vez, e nunca mais. Somos canoa no rio dos cosmos por uma tiquinha de tempo: não se aflija! Desta vida não sairemos vivos: sorria! “Somos um clarão entre duas imensas noites”, como diz Sponville… pequeno clarão de vida na escuridão da morte! O que é uma razão a mais para amá-la, a vida, justamente por sua preciosidade, por sua urgência, por seu ineditismo, por sua fragilidade, como se ama a vela quando se sabe que ela logo se apaga, que a luz que emana nada tem de eterna… E tentar fazer dela um obra-prima.
Sempre entendi o “eterno retorno” não como uma descrição de uma realidade, mas como um experimento da imaginação (sim, quase um sci-fi filosófico!), e um “devaneio” que Nieztsche imaginava fecundo, capaz de despertar impetuosas forças represadas no ser humano. Não é que a vida que cada um de nós vive irá retornar, idêntica, tal e qual, sem tirar nem pôr, como um replay perfeito e integral, só “mudando a hora do espetáculo”, como diz o personagem de Tarkovski em “O Sacrifício”.
Como o entendi, Nieztsche apenas pediu que SE IMAGINASSE algo assim, a repetição da vida, absolutamente idêntica a si mesma, para que tirássemos disso um aprendizado que, mais que ético, é de sabedoria. Devemos viver de modo que cada ação nossa, se imaginarmos que ela ecoa idêntica, eternidade afora, nos encha de júbilo. É como se Nietzsche substituísse o imperativo categórico kantiano, que manda que sempre deve-se agir de modo que desejemos que esta ação torne-se universal (por exemplo: ser bondoso querendo que a bondade torne-se regra-de-conduta para todos os homens…), por um outro: “Aja sempre de modo que deseje que este ato se repita na eternidade”…
Não são tão diferentes assim? Pois é! E não me importo: quiçá existe uma secreta fraternidade até entre Kant e Nietzsche, ainda que este último talvez vomitasse em minha cara se me tivesse ouvido sustentar isso. Mas pobres dos que não querem notar fraternidades, só para poderem se sentir filhos-únicos no cosmos!
Talvez eu sinta, tanto em Nietzsche quanto em Kant, que os move um desejo semelhante: o de que a vida humana seja vivida com o desejo de torná-la uma obra-prima! Por que não se encontraria aí um caminho bom para a virtude? Desejar uma boa-vida, mais até do que uma vida feliz, não é isso o que faz o sábio? Não lhe basta o prazer: ele precisa, também, da bondade. Ele é incapaz de considerar que “vive bem” só pela constatação de seus prazeres: gostaria também de sentir que vive bem nos domínios do intelecto, do afeto, da ética, da capacidade de simpatia e ajuda para com outras criaturas vivas…
Vida boa não significa uma vida onde só se gozaria. Uma vida assim, aliás, é uma impossibilidade, e desejá-la é cegar-se com quimeras. Acho que um obstáculo imenso que nos impede de chegar à felicidade é o fato de nós a imaginarmos de modo idealizado e kitsch, na crença temerária de que o ser humano pode atingir o reino da bem-aventurança absoluta. Ah, que força gigantesca tem este desejo humano! Que ardor nesse querer! Disso jorraram deuses, messias e templos!
Por sermos animais que anseiam tão ardentemente pela felicidade, nos sentimos na necessidade de inventar deuses. Inventamos deuses imaginando e desejando que eles nos auxiliariam a ser felizes. Ingênuos que somos! Mas alguns, enfim, um dia acordam do transe e percebem que não há Deus algum cuidando da felicidade dos homens.
Momento de angústia. Início da temporada do desamparo. Não digo que seja fácil: pra mim, foi muito duro. De uma dureza quase de matar. Não cheguei à pôr os punhos no caminho da navalha, mas não nego que pensei em suicídio. Não poucas vezes. Quase o desejei. Daqueles tempos, felizmente passados, e que espero que não voltem, trago uma espécie de rastro amargo, que ainda que me incomode, creio que me ajuda a entender melhor toda a amargura do mundo, quando a vejo em mim e em outros e me ponho, quando tenho a energia e o açúcar, a tentar adoçá-la…
Queríamos que houvesse um Deus que cuidasse da nossa felicidade, como nosso pai, se tivemos esta sorte, fez conosco em nossa infância. É doce a lembrança de quando éramos frágeis criaturinhas, anões quebráveis num mundo de gigantes, e havia um super-papai, lá fora, muito mais alto e poderoso do que éramos, e que trabalhava em prol do nosso bem-estar, provendo o alimento pra nossa fome, o leite para nossa sede, a cantiga para o nosso sono, o socorro para o nosso berro…
Por isso me parece tão acertada e tão elucidativa a tese do Freud de que a crença religiosa deriva de desejos infantis que subsistem no homem “maduro” (e maduro, aqui, só em idade, em número bruto de anos, deixando de lado o que chamamos de “idade mental/afetiva”). Sim, é isso mesmo: está-se sugerindo que a religião é uma… criancice. Crer em Papai-do-Céu é fruto, escancaradamente, de uma personalidade regressiva que não consegue se livrar de sua nostalgia da infância.
Daí decorre, parece, que o amadurecimento psíquico, a consumação da condição de “homem”, não mais de “adolescente” ou “criança”, necessita do abandono das infantilidades religiosas. E nem todo crescimento é prazeiroso. Imagino que os passarinhos machuquem bastante seus pequenos crânios ao quebrarem a cabeçadas a parede do ovo!
A religião seria também uma espécie de ovo ou de ninho, que nós mesmos fabricamos, que serve como um berço-para-adultos em que somos ninados pelo “divino”, em que permitimos que nos contem historietas consoladoras e doces que funcionam como o mel em nosso leitinho… Que gostoso, a felicidade estar assegurada! Que lindo, o final feliz ser garantido! Um papai na terra e um papai no céu: o quê mais poderia desejar desta vida um bebêzinho?
Mas não somos mais bebês, o retorno é impossível. Ajamos, pois, como homens despertos e maduros! Que despejemos sobre a vida um olhar lúcido, que não se deixa cegar pelo desejo! Só assim, me parece, os verdadeiros problemas vão poder ser resolvidos. Não com o sonho de soluções quiméricas, mas pelo confrontamento direto com o real e seus perrengues. Tomar em nossas próprias mãos o nosso destino! Pois bem se vê que do céu não têm chovido graças, ao menos não nos últimos milênios, e que se deixarmos a fome, a guerra, o fascismo, a ditadura, a tortura, a AIDS, o aquecimento global, a poluição do ambiente, a privatização do genoma humano e todos os outros inumeráveis males que grassam sobre a Terra como um trabalho para ser por Deus resolvido, estamos é fudidos. Fudidos. Pois Deus não resolverá nada. E talvez, quando de fato o percebermos, seja tarde demais para re-afinar o concerto desafinado do mundo…
Eduardo Carli
Publicado em: 23/04/10
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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